sábado, 4 de agosto de 2012

Os "Vencidos" também têm rosto e nome, Capítulo 2


Aqui é o estrado para os teus pés,
que repousam aqui,
onde vivem os mais pobres, mais humildes e perdidos.
Quando tento inclinar-me diante de ti,
a minha reverência não consegue alcançar
a profundidade onde teus pés repousam,
entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.
O orgulho nunca pode se aproximar
desse lugar onde caminhas
com as roupas do miserável,
entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.
O meu coração jamais pode encontrar
o caminho onde fazes companhia
ao que não tem companheiro,
entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.
Rabindranath Tagore

Como foi do conhecimento de alguns, a nossa amiga Fabiana, que estava internada no Hospital Municipal Philippe Pinel, em Botafogo, recebeu alta desta unidade na última quarta-feira, dia 01/08/12. Não tivemos ocasião de pensar o momento posterior a esta internação. Nossa amiga Carol Malagolli Engel, no entanto, veio em nosso socorro ao final deste dia, colocando-nos a possibilidade de conseguir internação em alguma clínica de recuperação de dependentes químicos administrada por igrejas protestantes. Dessa forma, não levamos a Fabiana para o endereço de sua mãe, no interior da comunidade do Jacaré. Pernoitou em nossa instituição, enquanto aguardávamos contato dos amigos que se mobilizaram para interna-la.
Algumas dificuldades surgiram. A maioria das clínicas recebiam apenas homens. Existia uma possibilidade para a quarta-feira da semana seguinte (dia 08/08/12). No entanto, um telefonema, ao final da tarde do dia 02/08/12 me alarmou: o amigo Paulo avisava-me que a Fabiana não queria permanecer na sede de nossa instituição. Fui lá imediatamente. Ao chegar, encontro-a com expressão desanimada, na porta. Pedi que entrasse para conversarmos. Narrou-me que sentia falta da droga. Sentiu o peso do desafio que tinha sob as costas. Conversamos, procurei fazê-la ver que não deveria desistir de si mesma. Oramos. Acalmou-se. Fiz-lhe companhia, enquanto Paulo, Carol e Nathália, também de nossa instituição, procuravam pesquisar/contatar pessoas para conseguir uma clínica para Fabiana. Paulo, por fim, entrou em contato com o pessoal da Secretaria Municipal de Assistência Social num container localizado no Catete, em frente ao CIEP Tancredo Neves. Conseguimos que ela fosse encaminhada a um abrigo da Prefeitura onde, posteriormente, seria encaminhada a uma clínica de reabilitação. Eu deveria chegar com ela às 21:30hs porque a van da SMAS chegaria às 22hs para partir.
Ao chegarmos, esperamos o Paulo no ponto de ônibus em frente ao container. Quando ele chegou, fomos de encontro a ele. Entramos no container. Começamos a conversar com o supervisor de plantão, que tinha conseguido, num programa, as informações da Fabiana. Eis que, em determinado momento, ela começa a olhar, de maneira estranha para cima, quase revirando os olhos. Começa a perder o equilíbrio, quase caindo da cadeira. Amparamo-la. Cogitam leva-la para o Pinel. Mudam de ideia. Resolvem leva-la para o Centro de Psiquiatria do Rio de Janeiro (CPRJ), na Gamboa. O motorista correu feito um alucinado na rua. Justifica-se: a Fabiana descontrolou-se no interior da van. Precisamos contê-la. Lá chegando, levamo-la para o interior da unidade e aguardamos atendimento, ainda tendo necessidade de segurá-la. O médico apareceu, examinou-a e fez uma medicação. Em pouco tempo, estabilizava. Neste meio tempo, o pessoal da SMAS retirou-se. Com a situação estabilizada, fui no banheiro. Quando volto, encontro o Paulo nervoso: o médico liberava de alta a Fabiana. Para onde leva-la? Ficamos desnorteados. O médico mostrava-se irritado com a atitude do pessoal da SMAS. Paulo ligou para Nathália e eu para meu amigo Gabriel, a fim de recebermos sugestões sobre o que fazer. Gabriel recomendou-me que conversasse com o médico, buscando negociar com ele a permanência dela na unidade até a parte da manhã, quando buscaríamos um local para ela. Caso o médico se recusasse, recomendou-me buscar o plantão do Judiciário, no prédio do Tribunal de Justiça, no Centro do Rio. Não foi necessário, graças a Deus. O médico, mais calmo, explicou-nos que a atitude dos funcionários da SMAS foi reprovável, largando-nos naquela situação. Resolveu conversar com a Fabiana. Depois da conversa, decidiu mantê-la naquela noite. Saímos de lá eram mais de 23hs. Fabiana estava lúcida novamente. Caminhamos até a Av. Rio Branco onde tomamos o taxi, com o compromisso de retornarmos ao CPRJ às 8hs da manhã. Em casa, ainda li alguma coisa sobre o programa “Enfrentando o Crack”, do container da SMAS que a levamos.
O sono foi tenso. Acordei antes do relógio. Mandei mensagem de celular para meu chefe no trabalho, mensagem que não chegou para ele, conforme me falou mais tarde. Partimos. Na unidade novamente, conversamos com a Assistente Social Karen, que nos atendeu atenciosamente. Explicamos a situação da Fabiana. Ela também se mostrou incomodada com a atitude da SMAS. Disse-nos que por volta das 11hs teria definição da situação da Fabiana, mas o mais certo seria a alta dela. Propôs alternativas de tratamentos/encaminhamentos para outras unidades. Retornamos ao Catete e conversamos com outros servidores, do plantão da última sexta (03/08/12). Deixamos encaminhada a possibilidade da Fabiana ir para o abrigo localizado na Ilha do Governador para, posteriormente, ser direcionada para uma clínica de recuperação de dependentes químicos. Retornamos ao CPRJ. Karen já tinha entrado em contato com o pessoal da SMAS do container. Deu-nos a receita da Fabiana, que naquela manhã mostrava-se muito melhor.
Fomos para o Catete. A previsão era de que a van da SMAS saísse de lá por volta das 15hs. Depois de conferirmos as informações da Fabiana no container e de breve conversa dela com os atendentes de lá, onde reafirmou a vontade de vencer a dependência química, fizemos hora no Museu da República. Pausa importante. Um cochilo breve aliviou-nos um pouco o peso das últimas horas. Faltando uma hora, lanchamos, ela medicou-se e fomos para o container. Fabiana, coitada, ainda teve dor de dente. Paulo providenciou um anestésico local. Assim que ela o aplicou, o motorista da van preparou-se para leva-la. Despedimo-nos. Fabiana estava, graças a Deus, encaminhada novamente. Prometemos-lhe roupas e visitas. Partiu. “Missão dada é missão cumprida”, disse ao Paulo, lembrando o Tropa de Elite... Despedimo-nos com um cansaço bom, do dever cumprido. A palestra do tribuno espírita Divaldo Pereira Franco, que pretendia ir naquele dia, na UERJ, não foi possível. Acho que vivemos uma experiência tão intensa quanto ela.
***
            Hoje (04/08/12), por volta das 16hs, quando fotografava na Praia de São Conrado, com algumas preocupações pessoais na cabeça, tentando distrair-me com a paisagem, o celular toca. “É do abrigo Municipal Irmã Dulce (Unidade Municipal de Albergamento Irmã Dulce, conforme http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=1221666 ). É o sr. Marco Aurélio?” perguntou-me. “Sim”, respondi. “Temos uma abrigada, a Fabiana Cruz de Oliveira, que diz ser sua sobrinha, quer falar contigo.” “Pois não”, respondi-lhe. Fabiana mostrava a voz embargada. Parecia emocionada. Falou-me, com entusiasmo, que tinha escrito naquele dia (ela sabe ler, mas sempre assinala que não consegue escrever), que o local era legal, que tinha professoras. Estava tomando seus remédios direito e que lhe deram algumas roupas, mas assinalou que ainda precisava disso. Perguntou-me quando iria lá. “A partir de quarta, provavelmente, Fabiana”, respondi. Despedimo-nos. Meus problemas, que me levaram a dar o passeio pela praia, pareceram menores. Voltei para casa, pensando como contar-lhes esta história, que não acabou, mas que tem vivido capítulos muito melhores agora. Deus permita que continue assim.

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